É um grupo cada vez mais
numeroso e com sede de prosperar e consumir. O crescimento dos
evangélicos no Brasil, em especial no ramo pentecostal, provocou mais do
que mudanças religiosas: fortaleceu um mercado econômico, que chama a
atenção tanto de igrejas como da iniciativa privada.
De seu lado, as igrejas criaram estratégias de
negócios. Algumas desenvolveram estruturas empresariais e planos de
carreira; outras lançaram até cartões de crédito. E diversas montaram
grupos e reuniões em que estimulam os fiéis a abrir negócios próprios e
sanar suas finanças, com base na Teologia da Prosperidade - movimento
que prega o bem-estar material do homem.
"Passava uma vida de miséria,
comendo carcaça de frango", conta uma frequentadora da Igreja Universal
do Reino de Deus (IURD), acrescentando que, depois que começou a
assistir às "reuniões da prosperidade" semanais da igreja, "as portas
começaram a se abrir". O depoimento é exibido pela própria IURD no
YouTube.
Em outro vídeo, um fiel diz que seus negócios
não deram certo até ele entrar para o culto. Depois de "sair das
trevas", ele comprou "quatro, cinco casas", onde cabem "sete ou oito
carros".
"A igreja é um local de ritos, mas hoje também
um espaço de trocas e bens simbólicos", diz Leonildo Silveira Campos, do
departamento de Ciências Sociais e Religião da Universidade Metodista.
Mara Maravilha tem loja na Conde de Sarzedas, rua especializada em atender público cristão
"É voltada a pessoas cada vez menos preocupadas
com questões transcendentais, e sim com o aqui e o agora. Para o novo
pentecostal, o dinheiro não é para ser acumulado como previa a ética
protestante, mas para comprar o carro e o apartamento novo. Para se
inserir no mercado de consumo."
Igrejas e empresas respondem a isso com
produtos, que incluem cartões de crédito - emitidos pelas igrejas
Internacional da Graça de Deus e Assembleia de Deus - e lançamentos
constantes.
A rua Conde de Sarzedas, no Centro de São Paulo,
se especializou em atender consumidores cristãos. Ali, é possível
comprar de bíblias segmentadas a CDs, jogos de tabuleiro com temas
bíblicos e pacotes de turismo para Egito e Israel.
Público fiel
"É um lugar onde as pessoas sabem o que querem
consumir. É um público fiel", diz à BBC Brasil a cantora e apresentadora
Mara Maravilha, que, há 15 anos convertida à fé evangélica, tem uma
loja onde vende seus CDs e DVDs gospel na Conde de Sarzedas.
"Graças
a Deus que se abrem muitas igrejas. É melhor do que abrir botequim. A
gente, por mais que dê, nunca vai conseguir dar mais do que Deus nos dá"
Daniel dos Reis Berteli, 29, da igreja Nazareno
do Brasil, comprava livros, roupas e CDs evangélicos em uma loja ao
lado. "Antes, não tínhamos essa variedade de livros", diz. "Há uns 15
anos, minha mãe fazia lembrancinhas religiosas com cartolina. Hoje, está
tudo mais profissional."
A percepção de que o setor caminhava rumo à
profissionalização levou Eduardo Berzin Filho a promover a feira
ExpoCristã, realizada há dez anos em São Paulo. Ele diz que a edição de
2010 atraiu 160 mil visitantes e expositores como editoras, gravadoras
gospel, empresas de mobiliário para igrejas e até consultorias de gestão
de templos.
O mais claro exemplo pentecostal de estratégia
de negócios vem da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), que diz ter
presença em mais de cem países – mais do que qualquer multinacional
brasileira.
A IURD montou uma estrutura empresarial que faz
de seus pastores "profissionais da religião, com metas de atração e
conversão de fiéis, de arrecadação (de dízimo) e de ampliação de
recursos", afirma Ricardo Mariano, professor da PUC-RS e autor de um
livro sobre a Universal.
Daniel Berteli é comprador de produtos evangélicos, mas se incomoda com 'profissionalização' de igrejas
Para os pastores, diz Mariano, "existe quase um
plano de carreira, que permite que eles passem para congregações
maiores, vão para outros países e participem de programas de TV" se
baterem as metas.
A IURD e outras seguem "os principais preceitos
do marketing: preço, publicidade, praça (localização de templos) e
produto", opina Mario René, professor de Ciências do Consumo na ESPM e
doutor em teologia prática.
Os especialistas ressaltam que há traços de
profissionalização e mercantilização também em outras religiões – só que
eles estão mais evidentes nas pentecostais e neopentecostais por conta
de sua exposição midiática e do próprio crescimento dos evangélicos no
Brasil.
Segundo o estudo Novo Mapa das Religiões, da
FGV, os evangélicos representavam 20,2% da população brasileira em 2009,
contra 9% em 1991. Boa parte se concentra na emergente classe C.
Os pentecostais são por volta de 12% da
população, mas, segundo estudo prévio da FGV, respondem por 44% das
doações feitas às igrejas.
Doações
"A igreja é um local de ritos, mas hoje também um espaço de trocas e bens simbólicos"
Leonildo Silveira Campos, do departamento de Ciências Sociais e Religião da Universidade Metodista
Agora, além de solicitar "ofertas" para
continuar a "obra de Deus", a Igreja Universal pede contribuições para
financiar o Templo de Salomão - versão brasileira de um histórico templo
em Israel.
Em um culto recente da igreja em São Paulo, o
pastor exibia aos fiéis um vídeo sobre o templo, que está sendo erguido
na Zona Leste da cidade e custará R$ 350 milhões.
"Os (doadores) terão seus nomes colocados nas
640 colunas do templo", diz o pastor, pouco antes de serem entregues
envelopes para doações. "O bispo disse que um homem doou R$ 200 mil. Se
você não pode 200 mil, pode mil, pode 500. Doe de acordo com a sua fé."
Alguns fiéis apoiam o pagamento do dízimo e doações desse tipo como forma de dar continuidade ao trabalho religioso.
Mara Maravilha, fiel da Universal, é uma delas.
Para a cantora, quem não paga a contribuição está "roubando de Deus" e
"se o pastor vai fazer certo ou errado (com o dinheiro), isso não cabe
mais" ao fiel.
Igreja Universal está construindo seu maior templo em São Paulo
"Graças a Deus que se abrem muitas igrejas. É
melhor do que abrir botequim", afirma Mara. "A gente, por mais que dê,
nunca vai conseguir dar mais do que Deus nos dá."
Ela também rejeita as críticas de mercantilismo.
"Os produtos têm efeito que não tem dinheiro que pague para uma pessoa
sem esperança. Antes, eu vendia até revista masculina. Hoje, vendo a
palavra de Deus. Estou errada hoje ou estava antes?"
Perigo
A executiva Márcia Félix, 37, fiel da Igreja
Quadrangular, tem opinião semelhante. Afirma que sua igreja incentiva
seu crescimento e a realização de seus sonhos e que o eventual
enriquecimento de pastores não a incomoda.
"Busco primeiro o Reino de Deus e sua justiça", argumenta a fiel evangélica. "Se tem quem rouba, é cada um com Deus."
Já Daniel Berteli, frequentador da Conde de
Sarzedas, diz que considera a visão empresarial da religião "perigosa".
"(Algumas igrejas) têm deixado o princípio de servir e viraram
indústria."
O limite para a atuação das igrejas é difícil de definir, levando-se em conta que é tênue a linha que separa consumo e religião.
"Não temos um compartimento mental para a
religião", diz Mário René, da ESPM. "Todos buscamos sentido, que pode
ser atingido por espiritualidade, responsabilidade social, esoterismo e
até pelo consumo."
"Não
temos um compartimento mental para a religião. Todos buscamos sentido,
que pode ser atingido por espiritualidade, responsabilidade social,
esoterismo e até pelo consumo"
René avalia ainda que, hoje, a prática comercial
é praticamente inerente ao processo de angariar fiéis para uma
determinada crença.
"Posso abrir uma igreja com praticamente nada. E
daí, o que eu faço? Preciso de uma estratégia de marketing para ter
sucesso, então vou procurar um pastor carismático e assim por diante",
diz o pesquisador.
Para Ricardo Mariano, da PUC-RS, a questão é se a
narrativa do apelo à prosperidade terá força no longo prazo. "Se a
solução para os problemas (dos fiéis) é pontual, como engajá-los por um
longo período? Isso não foi resolvido ainda."
*Com Paulo Cabral, da BBC News em São Paulo